quarta-feira, 28 de maio de 2008

Espaços

Gostei desta matéria sobre um espaço em que estamos inseridos, ou achamos que estamos...
Acho que faz parte do início...

Fiquei olhando uma dessas lesmas pequenas, de duas anteninhas, que mora em um buraquinho do piso do banheiro. Demorou mais de meia hora para que escorregasse alguns centímetros por cima da gosma fosforescente que seu corpo produz. Pensei nas aranhas que imaginei domesticar, na cela forte da Penitenciária do Estado. Elas escalam, descem, sobem e dominam o espaço em que vivem. Rainhas do pedaço do mundo que escolhem para si. Retirei-a num papel e coloquei entre uma folhagem. Tomara que faça morada, ela me comove em sua vagarosa persistência.

Infalível, o pensamento me remeteu ao último xadrez em que estive na prisão. Sobrevivi ali por dois anos, com mais 11 parceiros de cela. Cada dia a lembrança torna menor aquele lugar. Aprendi, na prisão, a não me acomodar ao espaço e sempre estar encostado no tempo, esperando o pior.

Mas não há determinação maior que o desespero humano por qualquer migalha de felicidade. E assim, aos poucos, estava apegado ao espaço, me sentindo parte. Acho que morar é isso: sentir-se parte das paredes, dos móveis e de tudo ao redor, por incrível que pareça até das grades. Era ruim, mas a gente acabava achando que as outras seriam piores ainda. Até se habituar, doeria. Então lá vinham as tais “ordens superiores”, e eu era removido para as mais longínquas prisões do Estado. E assim se foram mais de 30 anos, de buraco em buraco, dividindo meu valor pela auto-estima e multiplicando pela autocrítica.

Ao sair, tive os maiores conflitos. Vivia a derradeira esperança de pertencer a um mundo qualquer. Ter um lar. Unido a uma companheira, fui morar com ela. Sua casa era enorme, confortável no último. Empregados para tudo, paz e tranqüilidade, que aos poucos se transformaram em rotina e depois em tédio.

Não conseguia pertencer. Um lar que não construí não é meu lar. Casa tem a ver com trabalho e dedicação. Esta lá no livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry: “Foi o cuidado que tiveste com tua rosa que a fez tão importante para você”. Agregamos sentimentos ao que fazemos com prazer. E casa tem a ver com prazer de viver, estar, ter e pertencer.

Poucos dias antes de minha libertação, vim do Rio lançar o livro Tesão e Prazer. A Trip me instalou, por três dias, no Hotel George V. O banheiro do apartamento em que fiquei sozinho era maior que a cela em que morávamos em 12. O quarto tinha sauna; hidromassagem; TV a cabo em todos os aposentos; cozinha superequipada; dois quartos enormes.

Fiquei ali sem saber o que fazer com tudo aquilo, engolindo instantes. Pensei na contradição: dias antes, na prisão, o parco espaço nos amontoava. E agora ali, com todo aquele espaço me oprimindo, igualmente. Não preferi a prisão por motivos evidentes, mas a angústia exigia decisões. Abri todos os registros; sauna; hidro; chuveiro; TVs; aparelho de som. Molecagem minha. Algo por dentro produzia a certeza de que iria pagar caro por aquilo, como sempre. Nunca fui feliz sem ter que sofrer muito, depois.

Hoje moro sozinho em um minúsculo quartinho com um pequeno banheiro, na periferia de São Paulo. Poucos móveis, mas eficientes. A única coisa que tenho mesmo de montão são livros. Nem dá para contar. Eu os amo. Às vezes passo horas arrumando, classificando, alisando, sentindo prazer antecipado pelos que ainda não li e lerei.
Esse quarto acanhado, menor que uma cela, é meu lar, mais do que qualquer outro lugar no mundo. Aqui trabalho, tenho prazer, leio, pesquiso, durmo e vivo em paz, como queria. Quando algo não vai bem, ligo o computador, abro o Word e escrevo até cansar os olhos e os dedos. Às vezes saem até textos bons.

Um crítico dirá que estou morando muito mal. Concordo quanto ao aspecto físico. Mas estou bem, aqui é meu lar, onde vivo perseguindo a estranha volúpia de tentar ser alguém de quem me satisfaça.

*Luiz Alberto Mendes, 53, é um pouco como o inseto que ajudou em seu banheiro. Demorou, mas saiu do buraco. O autor de livros como Às Cegas (Companhia das Letras, 2005



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